Entendendo a Barranca
Nada
acontece por acaso, segundo a teoria dos racionalistas (estes caras que
são alimentados a ração balanceada). Talvez tenham lá suas razões, os
cujos. Menos no que se refere ao festival da Barranca. Este nasceu por
acaso como os nenês de novembro, frutos da semeadura suada do Carnaval.
Pois
sucede que o pessoal de Os Angüeras e mais alguns de achego, desde pelo
menos 1965, realizavam duas grandes pescarias no ano: uma na Semana
Santa, outra em setembro. A primeira para o tradicional jejum de carne
(mulheres não nos acompanhavam e até hoje não). A outra na Semana da
Pátria, para escapar (desculpa ...) dos chatíssimos desfiles que são a
tônica da efeméride cívica.
Para
uma e outra pescaria vinham de Porto Alegre o Antonio Augusto Fagundes (Nico)
e o Carlinhos Castilhos (Passaronga), com o Juarez Bittencourt (Xuxu)
algumas vezes e, quando em quando, com outras caras mais ou menos
simpáticas.
E
aí aconteceu. Por acaso, repito, contrariando os racionalistas. A gente
estava no “Pesqueiro da Bomba”, no Rio Uruguai, na Semana Santa de 1972.
Havia tomado umas que outras, alguém falou na Califórnia da Canção
acontecida em primeira edição no dezembro anterior, em Uruguaiana,
quando uma voz (acho que do Passaronga, outros acham que outro, há quem
jure que de um espírito) sugeriu: - E se a gente fizesse o nosso
festival? Aqui mesmo, no improviso, na barranca do rio?
... Então, naquela Semana Santa, noite de quinta-feira, ficou
assentado em cepo de três pernas que se faria o festival. O Tio Manduca
(disso sim, me lembro) propôs que as composições tivessem por base, tema
único, nomeou-se o presidente da “Comissão” e lascou o tema:
“Acampamento de Pescaria”. E aditou, enquanto me filava o trigésimo
oitavo cigarro daquele dia: - Sábado de noite os artistas se apresentam.
Vocês têm o dia todo de amanhã para trabalhar o tema. Tá resolvido ...
... Houve três concorrentes neste primeiro Festival da Barranca,
que, naquela época e porque estava em seu início, não merecia as
maiúsculas que lhe dou. Carlinhos Castilhos, só e mal acompanhado; Nico
Fagundes com “Fuça” no violão e, em dupla Zé Bicca e esta voz que vos
fala.
Apresentadas
as composições, por ordem de sorteio, cantou o Carlinhos (palmas, palmas
e palmas), cantou o Bicca (idem, idem e idem) e finalmente o Nico
(ibidem, ibidem e ibidem). A platéia, meio sobre a empolgação,
assentava-se em semicírculo. Todos (eu disse todos) votaram. Menos os
concorrentes, claro. Ganhou o Nico, com “Eu e o Rio” – hoje gravada,
como tantas composições que nasceram na Barranca para ganhar alguns dos
mais importantes festivais nativistas do Estado.
O
detalhe, nisso tudo, é que a composição vencedora (linda, a melhor
da noite), nada tinha a ver com o tema proposto. Cantava a relação
espiritual de um amante descornado com as águas do Rio Uruguai. Mas o
fato é que ganhou. O que prova, desde a idade da pedra dos festivais
nativistas, que júri deste tipo de evento não é flor de cheirar com
pouca venta.
A
confraternização foi geral, o vencedor queria por que queria o prêmio
(mas que prêmio caracos?). O Milton Souza ganiçava de raiva por que lhe
haviam estragado a gravação (para a rádio São Miguel, ouviram?) por
intervenção de calão não recomendável, eu achei que estava uma beleza,
nada como o autêntico e o espontâneo para valorizar uma reportagem ...
Aí o Milton me olhou de esquadro e eu saí pelo arrabalde. Pensando que
Deus me desse saúde, engenho e arte, um dia eu ia escrever esse
episódio.
O
que faço, vinte anos mais velho, mas feliz. Porque o Festival da
Barranca, nesse tempo, depois de catorze edições, faz por merecer as
maiúsculas que agora lhe confiro.
Apparício
Silva Rillo - 1985 |